sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Doce novembro



Novembro trouxe consigo muita expectativa, além de trabalho inesgotável e correria, claro, atributos natos do Projeto Experimental, vulgo PREX. Foram nove meses de dedicação, como em um período gestacional. Inúmeros sacrifícios, abstinência familiar, finais de semana bem gastos com pesquisa, produção, edição e afins.
Na verdade, o TCC (trabalho de conclusão de curso) foi pra mim uma válvula de escape, contrariando a sensação de incapacidade que senti na época em que começamos a elaborá-lo. Fevereiro de 2011, início de semestre, necessidade urgente de se pensar em um grupo e um tema para o PREX. A escolha estava “tão certa como o ar que eu respiro” (parafraseando a música): Dionézio Costa, Júlio César, Lidiane Guimarães e Muriele Silva, com o tema Hospital do Câncer de Rio Verde. Para os íntimos: MuriLidi, Julinho e Costa, defendendo o Projeto dos sonhos. Ali começava o que eu posteriormente chamaria de saga, ou praga do PREX.
A empolgação com o novo e desafiador projeto logo foi interrompida pela pior notícia que já recebi na minha vida. Me lembro das palavras da Lidi, ditas a outras pessoas, claro, na vã tentativa de não me deixar perceber o quanto o momento era cruel: “sei que tragédia não escolhe hora pra acontecer, mas esse é o pior momento pra algo assim vir sobre a vida da Murizinha”. Inicialmente, concordei com ela. No decorrer do ano, entendi que se não tivesse uma causa tão importante pela qual lutar, não teria continuado viva, pelo menos não literalmente. O trabalho foi uma forma de canalizar a dor, de me concentrar em outra coisa a não ser a perda, a injustiça, a ausência do meu pai. Eu precisava ir até o fim, simplesmente porque ele havia dito para os amigos que tinha uma filha jornalista e eu não poderia permitir que pensassem se tratar de uma mentira. Eu não queria decepcioná-lo, nem me decepcionar, nem decepcionar meu grupo, muito menos o hospital. Eu suportei o mês de março como quem dava o último suspiro de vida ao final de cada dia. Nos meses que se seguiram, me doei o tanto quanto pude ao projeto, percebendo nele uma maneira, por mais discreta que fosse, de amenizar a sensação de vazio e da minha inutilidade na Terra.
Meus amigos tiveram de se acostumar com a minha constante ausência, ausência essa provocada pelo projeto e pela perda que fez de mim uma companhia nada agradável. A maioria deles soube lidar tão bem com isso que nem acredito. Sem cobranças, sem perguntas de por que ou pra quê. Apenas abraços, sorrisos e lágrimas, acrescidos de “não é assim que funciona, dona Muriele”, “vou te dar uma semana pra sair dessa vida”, “se não deixar de ser mal criada, vai ficar sem sobremesa”... Não sei o que seria de mim sem os choques de realidade que recebi dos meus anjos. Nada do tipo “sua mãe precisa de você”, ou “você tem que ser forte”... Ouvi coisas que realmente marcaram minha vida e influenciaram minha volta a ela, coisas que só quem me conhece bem poderia dizer, sem estereótipo, sem julgamentos.
Pesquisa bibliográfica, correções, incompatibilidade de idéias, produção de pautas, gravação de entrevistas, decupagem, roteiro, mais pesquisa, mais correções, um pouco mais de pesquisa, e mais um pouco, e mais um pouco. Com Nichols eu aprendi não só a respeito do poder de persuasão do documentário... Entendi que ele poderia mudar histórias, inclusive a minha. Bernard foi útil quanto à produção do filme, mas também reafirmou a tese de que quando acreditamos em algo, temos que lutar para provar sua viabilidade. Barbosa foi categórica quanto aos direitos dos portadores de câncer e às dificuldades enfrentadas por eles, além de me fazer repensar a respeito da brevidade da vida, tema tão pertinente ao momento pelo qual eu passava.
Por inúmeras vezes a reunião de PREX foi descaracterizada, transformando-se em um tempo de consolo, em que a Lidi paciente e atenciosamente me ouvia chorar e repetir as mesmas histórias por horas a fio. É incontestável que ambas aprenderam e cresceram muito nesse período. É incontestável também o quanto ela me ajudou a manter a sanidade, sendo verdadeiramente meu ponto de equilíbrio. Ela fazia com que as coisas parecessem mais fáceis. Hoje vejo que não era nada tão simples quanto ela pintava, e ela sabia disso. Mas sabia também que se demonstrasse fraqueza e insegurança diante da irmã fragilizada, certamente a levaria à desistência. “Murizinha, dá pra melhorar pra eu poder ter minhas crises também”? Nunca vou me esquecer das renúncias que fez, do quanto foi altruísta e abnegada, tudo por mim, tudo pra me ver chegando inteira ao final do ano e da vida. Quantos dias 16 passamos juntas, digitando, chorando, comendo e cantando “we are the champions, my friends”! A Lidi não me deixou desistir e fazia questão de lembrar quem eu era o tempo todo. Ela me permite errar, chorar, cair, sentir raiva, frio, calor, tédio, preguiça, amor, ódio (momentâneo)... Coisas simples, mas que me tornam humana, como de fato sou.
Sempre que passávamos pelo auditório, vazio e escuro, repetíamos a mesma frase: “um dia isso aqui estará lotado, esperando por nós”. Parece até que ele entendia o recado e ia se projetando para a noite memorável que testemunharia. Na noite anterior à apresentação, a última e fatídica crise, que me levou a crer que, se tivesse que esperar mais que um dia, não conseguiria suportar. Eu havia chegado ao meu limite. Limite de paciência, de estresse, de cansaço, de dor física e emocional, de sono, de aulas sem banho, sem almoço, sem vontade. Eu pensei em desistir, confesso. Mais de uma vez. Principalmente em noites de crise, as quais são aparentemente instransponíveis. Mas não são. São apenas noites escuras e, quanto mais escuras se tornam, mais denunciam a chegada do amanhecer. 
De repente, passaram-se os noves meses e foi marcado o dia do parto: 08 de novembro. Após uma gestação de risco, com inúmeras dificuldades e superação das mesmas, nasceu o Projeto dos sonhos, com o peso de 23 personagens e o tamanho de 25 minutos. No dia da cirurgia, logo pela manhã, começou o trabalho de parto. Olhar para o auditório vazio e imaginá-lo repleto de rostos conhecidos parecia não condizer com a realidade. Mas o fato é que, após muita correria com os últimos toques, a exemplo das caixinhas de pipoca que ficaram tão famosas, chegamos nós quatro (eu, Lidi, Júlio e Costa) juntos, como quem chega a uma noite de premiação do Oscar. Não deu tempo de observar o auditório vazio e compará-lo com aquele que havíamos visto pela manhã, porque sem que pudéssemos perceber, ele logo estava cheio, literalmente cheio, sem poder acomodar todas as pessoas que ali estavam para assistir o nascimento do nosso filho. Quanta honra! Quanta alegria! Vontade de chorar, de abraçar todo mundo, de terminar o que havíamos começado, de começar tudo de novo!
Quando dei por mim, estava no palco, e diante dos meus olhos uma pequena multidão que torceu, orou, rezou e colaborou com o nosso sucesso. “Senhoras e senhores, boa noite. Sejam bem-vindos à estréia do filme Projeto dos sonhos: Hospital do Câncer de Rio Verde”. Mais surpreendente do que ver tantos olhos atentos ao que eu dizia, foi ver esses mesmos olhos se apertando e dando lugar às lágrimas sinceras, de admiração, de reconhecimento, de gratidão. Ao final do filme, eu e meu grupo, de mãos dadas, fomos aplaudidos de pé, não porque merecíamos tal ato, mas porque estava escrito que deveria ser daquela forma. Como em um passe de mágica, aquele momento único passou, rápida e definitivamente. De repente não vi mais ninguém, a não ser a banca examinadora, que nos julgou de acordo com nossos cuidados com a gravidez. O resultado foi muito bom... Todos aprovados, com a maior nota para a Lidi, justa e merecidamente.
A sensação do pós-banca é indescritível... Um misto de sentimentos que não cabem dentro do peito, que precisam ser verbalizados. “We are the champions, my friends”! Sim, nós somos campeões, por motivos que perpassam um simples trabalho de conclusão de curso. Depois da argüição dos professores, o verdadeiro sentimento de liberdade, de missão cumprida. Para minha surpresa, alguns amigos me aguardavam lá fora, e juntos fomos aproveitar o final daquela noite que, mesmo merecendo ser eternizada, havia sido tão curta.
Mal deu tempo de comemorar e eu já tive que voltar pra casa, arrumar as malas e partir. Considerando o destino, o sacrifício foi, no mínimo, válido. Intitularia a viagem como “os dez manés, sentido litoral”... Eu, mâmis, Lô, Naná, João Neto, tia Regina, Amigo, Rogério, Silvânia e Gaby fomos para o Guarujá – SP, onde pude, pelo menos, descansar a mente e me divertir muito. Em homenagem à Naná e à Lô, preciso lembrar detalhes que fizeram toda a diferença. Lá vai, meninas:

“Óh, que calor. Queria tanto um sorvetinho”!
“Respeita a puliça”!
“Olhando para sempre”.
“Hú, ‘sombração’! Hú, cabeção”!
“Passa o anel de verdade”.
“Janete, essa foto te favoreceu, hein”.
“Tá de deboche”?
“Bom dia”. “CALABOCA”!
“E você, moça”? “NADA”.                        
“Lorrane, me empresta dois reais”? “NÃO”. “Então tira uma foto”? “NÃO”.
“Naná, ignore minha mãe e continue a nadar”.
“Tira uma foto! Eu acho que vi um gatinho”.
“AAAAAAATCHIM”! (Velhinhas ricas).
“Humildade”! TRELA.
“Vou beijar as três pra ninguém chorar”. “Fala pra ele que a gente não tá interessada e que ele teria que pedalar muito”.
“Era pra ter virado ali, Amigo”! “Mas o GPS falou que era pra seguir reto”.
“Você chegou ao seu destino”! CRI CRI CRI.
“Anêim, mãe. Vou te fazer massagem até você deixar de ser revoltada”.
“Isso é que é bonita”! “Que bosta”!
“Nágilla, me dá um aí. Você fica com dois e eu fico com dois”. “NÃO. Você não quis me emprestar dois reais”.
“Neguinha, a Lorrane falou pra você morrer sem prova”.
“Volta pro mar, oferenda”.
“Bandida, disgranhenta. Óh o quê que ela faz com a gente”! “Quem, Neguinha”? “A muriçoca”!



No dia 14 de novembro, já em casa, fiquei maravilhada com as notícias a respeito do Projeto dos sonhos. Ao que tudo indicava, até então, o filme estava alcançando seus objetivos. No outro dia, ironicamente véspera do dia 16, como no mês anterior, lá estávamos... Eu, a Claudinha, o Lindeza e a Naná, desta vez com a presença não menos importante da minha mãe, da Lô e da Nilla. Ironicamente, ou não. Propositalmente, eu creio. Assistimos “Ironias do amor”, um filme perfeito, daqueles que retratam um romance inocente, bem à minha maneira. De repente era dia 16. De repente eu já estava sem meu pai há oito fatídicos e extensos meses.
Voltei ao trabalho e à minha rotina, desta vez sem PREX, o que me causou certa nostalgia. Como de costume, a Lidi me deu “a boa notícia do dia 16”: ela marcou seu casamento para 11 de maio de 2013, e teria marcado para o dia 16 se houvesse uma data conveniente, só pra tentar me deixar como lembrança algo feliz e marcante no mesmo dia em que minha vida perdeu o sentido. Como boa notícia pouca é bobagem (parafraseando a Claudinha com o seu “egocentrismo pouco é bobagem”), passei o dia com o Otávio, que de maneira impressionante quase faz com o que o dia 16 pareça outro qualquer. Eu disse quase. O jeito que ele me olha parece demonstrar que entende minha dor e que é solidário a ela como ninguém. Detalhes desagradáveis tornaram o dia mais difícil pra mim, porque, infelizmente, há pessoas que não respeitam a dor e o espaço alheios, pessoas para as quais verdadeiramente “egocentrismo pouco é bobagem” (mais uma vez parafraseando a Claudinha). Mas tudo bem... O dia passou.
Uma marca eterna foi deixada em meu coração no dia 19. Executamos a primeira mostra pública no Projeto dos sonhos e, claro, não haveria melhor lugar para fazê-lo a não ser no Hospital do Câncer, que realizava também sua 8ª Campanha Liga da Mama. Na ocasião, o deputado federal Heuler Cruvinel anunciou ao expressivo público o repasse de uma verba no valor de R$ 3 milhões para o HC... Ainda não sou mãe, embora acredite compreender o significado de ser, mas naquele momento era como se um filho meu estivesse recebendo o tão esperado benefício. Não consigo explicar esse sentimento pelo hospital... Enfim, o filme emocionou a muitos, em especial uma professora que, após pedir o uso da palavra, chorou e nos fez chorar também. “Isso é o que eu chamo de trabalho de conclusão de curso, e não aquela papelada que entregam pra ficar arquivada na faculdade”. Justamente, nobre e desconhecida professora. Trata-se da tentativa de promover mudança e ajudar o próximo, que nem precisa ser tão próximo assim... Pode ser de longe, mas não deixa de ser próximo.
Antes que pudesse morrer de tédio sem o meu amigo PREX, lá estava ele de volta. Dia 23 era o prazo limite para a entrega e nós não tínhamos tempo a perder. É claro que, como de costume, as coisas não aconteceriam de maneira fácil pra nós. Com muita dificuldade (o que nos instigou a crescer durante todo o processo de produção do trabalho), conseguimos entregar o material dentro do tempo estabelecido. Assim acabava a nossa saga, ou a praga do PREX. E não foi só o Projeto dos sonhos que nasceu neste mês... A Ana Beatriz também, saudável e faminta. Aliás, esse foi um mês de muita comemoração... No dia 24, a Gaby completou seus quatro aninhos.
Após as duas únicas provas da faculdade, sendo a última no dia 30, eu estava de férias, pelo menos academicamente falando. Aliás, o último dia de aula foi triste, já que era também a despedida dos colegas de jornalismo e publicidade que concluíram seus cursos. Apesar de já ter apresentado o TCC, eu ainda tenho um semestre pela frente.
Acabava então o meu doce novembro, que deveria abrir precedentes para um dezembro tão doce quanto. Acontece que dezembro é meu mês preferido, dado o amor que sinto pelo Natal. Isso me dá medo, porque vai ser o primeiro sem... Bom, sofrer por antecipação é tão eficiente quanto mastigar água e, além do mais, esse é assunto para outro texto. Feliz novembro!


“Flores de maio, sol de verão, a primavera está chegando... É o fim da solidão. O pardal encontrou casa e a andorinha ninho para si... E eu os Teus altares. Nuvens e raios sobre o sertão, avisa lá que está chovendo... É o fim da sequidão. Diz ainda que a gente conseguiu sobreviver à dor e Deus mandou a chuva. Primavera e verão, no outono ou inverno, então, o Senhor é o meu Pastor. Na alegria e na dor, eu confio em Ti, Senhor. Nada vai me separar do Teu amor"! 

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