terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A trilogia e o Senhor dos meus dias

Eu já sabia que no primeiro ano tudo seria mais difícil. Primeira páscoa, primeiro dia dos pais, primeiro Natal, primeiro ano novo, primeiro aniversário dele, meu primeiro aniversário... Estas duas últimas datas ainda tinham, entre si, o dia 16, no qual a saudade completava 10 meses.
Pois bem, a trilogia 11, 16 e 19 parecia determinada a causar dilaceramento. É inevitável lembrar o que aconteceu em seu último aniversário (como tenho feito com outras datas igualmente importantes). Pela primeira vez na vida, desde que eu me lembre, esqueci de ligar no dia do aniversário dele, no ano passado. Logo eu, que sou tão atenciosa com essas datas, e logo aquele aniversário, que seria o último...
Tentei corrigir o imperdoável erro no dia seguinte e o celular estava fora da área de cobertura. Lembrei-me que ele estava no Mato Grosso, especificamente em um lugar no qual não havia antena para telefonia móvel. Sendo bem sincera, foi um grande alívio. Pelo menos eu não sentiria culpa e ele não saberia, nunca, que eu havia me esquecido. Dói dizer isso, dói maquiar o desconforto... Eu poderia simplesmente contar uma linda história, surreal, porém inocente, daquele aniversário. Mas, dessa forma, não poderia oferecer cura aos que sofrem com lembranças parecidas. Por que me martirizar por conta de um único dia, se todos os demais da minha vida, e Deus sabe do que estou falando, foram dedicados a fazê-lo se sentir bem, a amá-lo incondicionalmente, a respeitá-lo e dar orgulho a ele? Mais uma vez, tive a oportunidade de praticar uma importante lição aprendida há algum tempo: não posso ser tão dura comigo.
Na época em questão (depois do meu aniversário, que é no dia 19 de janeiro) estavam sendo realizados os pré-congressos na minha igreja. Pra quem desconhece completamente o assunto, trata-se de cultos em todas as congregações pertencentes ao templo Sede; cultos esses que têm o intuito de divulgar o nosso mais importante congresso de jovens, que acontece sempre no período do carnaval. Por motivos bastante específicos e, juro, não óbvios, eu havia feito um compromisso de participar de todos os pré-congressos e ensaios do conjunto e, para tanto, ficaria o tempo que fosse necessário sem ir até Acreúna. Vale destacar que, até então, eu não conseguia ficar um fim de semana sequer sem ir pra lá... Nunca consegui cortar o “cordão umbilical” e sentia a necessidade de sempre estar com a minha família.
Certo dia minha mãe ligou me intimando a ir pra Acreúna, sob a alegação de que faríamos uma festa surpresa pro meu pai. Foi difícil tomar a decisão de atender ao pedido dela, já que eu havia feito um compromisso com Deus. Mas meu Papai do céu não é um ser tirano, rígido, inflexível... Ele é maleável e só precisa que nos aproximemos com intimidade, sem medo, sem reservas. Tudo o que nos cerca é espiritual, mas não podemos espiritualizar tudo. Eu tinha a convicção de que Deus entenderia o quanto era importante pra mim ver o meu pai naquele momento. Eu sabia que Ele ficaria muito feliz em me ver em casa, com minha família, naquela específica ocasião.
Eu, Naná e Lorrane compramos os presentes de aniversário do meu pai. Uma calça, um cinto e uma camiseta, os quais ele mal usou... Preparei um discurso impecável para o momento da entrega, mas nada aconteceu como planejei. Lembro-me de vê-lo chegar sujo do trabalho e, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, minha irmã entregou os presentes pra ele, que os recebeu com um sorriso imenso, uma mescla de gratidão e orgulho das filhas adultas, ou quase isso. “Lorrane, não era pra entregar agora e também não era pra entregar o meu e o da Naná”! Eu logo esbravejei. Ele riu da disputa. Eu teria que nascer de novo pra ter outro momento tão significativo quanto aquele. A forma compenetrada como ele me olhou fez parecer desnecessária qualquer palavra. Tudo que eu havia ensaiado pra dizer desapareceu, dando lugar a um sorriso embargado e terno. Eu sei exatamente o que aquele olhar queria dizer... Era a nossa forma mais profunda de comunicação, já que ele tinha dificuldade em expressar seus sentimentos. Eu sei que deveria ter dito muita coisa, mas não trocaria aquele momento de singular intimidade pelo texto que mentalizei. “Muito obrigado”, ele disse sorrindo. Eu acenei com a cabeça e sorri de volta. Foi o último sorriso dele que recebi assim de forma tão particular, tão direcionada. Foi também a última vez que o vi me olhar tão profundamente.
Naquele dia meus pais iriam a um casamento e eu estava ansiosa pra vê-los chegar, por conta da surpresa. Mas quem se surpreendeu fui eu. Na verdade, a festa era pra mim, e minha mãe usou a desculpa do aniversário do meu pai porque sabia que de outra forma eu não iria pra Acreúna. Fiquei feliz e grata aos meus amigos pelo carinho, mas chateada por ter meus planos frustrados mais uma vez... Eu havia sonhado com aquela festa. Fui buscar meus pais na igreja e levá-los para a festa de casamento. Foi a primeira (e última) vez que dirigi sob o olhar cauteloso do meu pai. Lembro-me de perguntar se ele queria dirigir e ficar muito tensa ao ouvi-lo dizer que não, que queria ver como eu estava ao volante. Ele era motorista de caminhão, tão experiente, tão seguro. Eu não imaginava que o fato de dirigir tão bem não seria capaz de livrá-lo da morte pouco tempo depois. Enfim... Ele não me disse, mas acho que me aprovou como motorista, apenas pelo olhar, mais uma vez.
No dia seguinte, tivemos o nosso último almoço juntos. Foi, sem dúvida, o mais especial de todos. Apenas eu, ele, minha mãe, a Lorrane e a Naná. Ele, pela última vez, manuseou a churrasqueira, algo que gostava tanto de fazer. Acendeu o fogo com álcool e deixou suas digitais sujas de carvão no frasco. Como aquelas digitais me fizeram chorar depois que ele partiu... Eu tocava nelas como se estivesse tocando em suas mãos. Claro que, com o passar do tempo, as marcas desapareceram. As do frasco, não as do meu coração. O fim de semana perfeito chegava ao fim e eu precisava voltar pra casa. Eu tinha 21 anos, meu pai, 43. Tantos planos para o ano que acabara de começar. Planos interrompidos pouco tempo depois.
No dia 12 de fevereiro voltei em Acreúna para, sem saber, me despedir do meu pai. Na impossibilidade de mudar os projetos de Deus sobre a vida dele, tudo o que eu queria era apenas saber que aquele seria o nosso último abraço. Com certeza eu teria aproveitado mais, me agarrado a ele com toda força que havia em mim, me recusado a soltá-lo, a deixá-lo ir... O mais incrível é que estive lá outra vez, porém ele não estava dormindo em casa, por conta de seu trabalho na fazenda. Sempre que íamos até Acreúna, voltávamos de lá no final da tarde, às seis horas, aproximadamente. Nesse dia, por incrível que pareça, saímos às três da tarde, sem nenhum motivo aparente. Minha mãe disse que ele chegou quarenta minutos depois que saímos e por muitas vezes eu meu perguntei por que isso aconteceu, por que eu não esperei ou por que ele não chegou mais cedo. Depois, entendi que se eu estivesse lá, se tivesse o abraçado naquele dia, eu sentiria o que estava prestes a acontecer. Tenho certeza que sentiria. Acho que Deus quis me poupar de sofrer por antecipação ou evitar que eu orasse pra que Ele não o chamasse pra glória, porque era propósito Dele e tinha que ser assim.
Pouco tempo depois, no dia 16 de março, ele me deixou sem ter o cuidado de dizer adeus. Lá estava eu, escolhendo a última roupa que ele usaria na Terra. Isso foi cruel, mas, ao mesmo tempo, gratificante. Peguei a calça nova dele (aquela que eu havia comprado em seu aniversário), uma camisa que ele gostava muito de usar e uma gravata que combinava com a camisa... Gosto de pensar que ele ficaria feliz com a minha escolha.  A camiseta e o cinto do aniversário estão comigo e me fazem lembrar um dos dias mais especiais da minha vida... São lembranças que me fazem sorrir, chorar, acreditar, desacreditar. Fico pensando na roupa linda com a qual ele estará vestido quando o reencontrar, no céu. Sei que vai ser toda branca e que terá beleza ímpar...
Todos os dias 16 têm sido realmente muito difíceis pra mim, porém, não tanto quanto o último dia 11 de janeiro... Eram seis da manhã e eu despertei como um choque. Fui ao trabalho, mas era como se não estivesse lá. Suportei o tanto quanto pude, mas... Quando dei por mim, estava parada na porta da casa da Lidi. Pobre Lidizinha... Quanta coisa tem suportado por amor a mim. Acho que essa foi a minha pior crise e, pela primeira vez, minha sábia conselheira não sabia o que dizer. Mas a forma como ela me olhou, demonstrando aceitação, foi muito mais acolhedora do que qualquer palavra; isso sem falar do abraço e da maneira única que ela tem de fazer com que eu me sinta melhor: “quer contar como foi o último aniversário dele, irmã?” Nada pode ser mais libertador do que falar... A não ser, claro, a aceitação sem julgamento da pessoa que ouve. De repente, surge uma das idéias geniais dessa minha irmã por escolha... “Faça coisas que poderiam te deixar feliz hoje. Você vai se sentir melhor, eu garanto. Pode chorar, contar a mesma história quantas vezes quiser, mas faça algo bom”. Pouco tempo depois, eu estava sorrindo e apertando felisticamente os braços da Lidi... Só Deus sabe o quanto sou grata por essa amizade.
Fui pra casa e encontrei todo mundo no mesmo estado que eu... Eram visíveis os sentimentos de saudade, dor, tristeza, boas lembranças e dura realidade. É claro que a presença do Otávio fez com que tudo parecesse menos doloroso. Até certo ponto... Estávamos nós dois, como de costume, ouvindo música e cantando (eu me esforçando pra isso e ele só emitindo sons nada convencionais... É a única forma que ele tem de se expressar). Ele está na fase de incríveis descobertas, e uma delas é cantar “parabéns”. De repente, começou a bater palmas e sorrir pra mim, como se estivesse pedindo reconhecimento pelo grande feito. E eu o fiz, até que me lembrei que dia era aquele e o que significava o fato de o meu príncipe, pela primeira vez (pelo menos que eu tenha visto), cantar “parabéns pra você”. Continuei olhando pra ele, até que consegui recolocar os pensamentos no lugar e me dei conta de que era apenas uma coincidência. Ainda bem que ele ainda não sabia falar, pra não me obrigar a ouvir “muitas felicidades, muitos anos de vida”... Além de passar o dia com o Otávio, comi muito palmito, ouvi Thalles Roberto e chorei o tanto quanto pude (seguindo o conselho da Lidi, de fazer coisas das quais eu gosto). E esse foi o pior dia dos últimos dez meses.
Acho que sofri tanto nesse dia 11, que, pela primeira vez desde o acidente, o dia 16 foi só mais um, sem maiores danos e, por incrível que pareça, sem lágrimas. Logo chegou o meu aniversário, dia 19, e aí a tristeza pensou em se instalar... Mas eu me lembrei do que havia aprendido na virada do ano... “Aqui não, coração, você está guardado”.  É claro que o dia amanheceu totalmente diferente se comparado aos anos anteriores... Nada daquela euforia de sempre. O carinho dos meus amigos fez o dia parecer melhor, com certeza; mas, como aqui dentro de mim era impossível existir festa, isso se exteriorizou. Lembrei-me ainda de outro detalhe... No dia da minha última crise (11 de janeiro), a Lidi me aconselhou a pedir um presente pra Deus, mas eu não sabia o que pedir. Ela disse que não precisava saber... Era só pedir pra que Ele me surpreendesse com algo bom. Fiz isso, sem nem imaginar o que poderia receber. Pedi também algo bem específico e, infelizmente, recebi uma péssima notícia como resposta. Mas tudo bem... Eu não me relaciono com Deus pelo que Ele pode me oferecer e sei que o fato de Ele não me conceder o que desejo não significa que não seja bom ou que não me ame. Por outro lado, posso dizer que uma das minhas metas pra 2012 foi cumprida muito rapidamente... Ganhei uma Dudalina do casal Lindeza sem fim!
Sei que uma dor não respeita os limites do tempo, mas sinto que preciso me desprender das datas que mais me causam danos. Sei que Papai do céu é o Senhor dos meus dias, inclusive destes três... Preciso me convencer de que são dias comuns... Eu vou tentar. Eu disse “tentar”.


De todos os pensamentos que tive sobre o meu pai (e foram milhões), o que nunca me ocorreu é que eu estava exagerando. Eu nunca soube se estava sofrendo o quanto deveria. Só sei que estava sofrendo tanto quanto estava sofrendo, simplesmente. Nem disfarçando, nem fingindo.       


Um comentário:

  1. Fiquei muito emocionada com o seu texto Muri...
    Também acabei de perder meu pai no último dia 14 e o que eu mais queria era poder ter dado um último abraço.

    Não foi tão doloroso e repentino como a morte do seu pai, ele estava em uma cama de hospital lutando contra uma doença que, sem mais nem menos, tirou-lhe os movimentos do corpo e causava-lhe uma dor de cabeça angustiante. A Aneurisma o matou.

    Mas não interessa a causa da morte. Acredito que a dor é a mesma, o vazio é o mesmo, as lembranças marcam na mesma intensidade.

    Destes momentos tristes, só consigo me lembrar do último abraço que ele conseguiu me dar mesmo inconsciente, do sorriso triste que se esforçou para que eu me alegrasse.

    Ahh pai... Sinto saudade de ver você comendo do tanto que comia, das disputas do controle remoto da TV, do seu sorriso, de te ver chegando todo sujo do trabalho e, muito mais, do seu calor e abraço.

    Sabe Muri, não faz nem um mês que meu pai se foi... As coisas aqui em casa estão vazias, mas se normalizando aos poucos. Acredito que Deus tinha planos mais ricos para o meu pai junto a ele, por isso ele nos fortalece a cada dia.

    A saudade fica e sempre aumentará... Caberá a nós manter vivas as lembranças, o perfume na nossa memória. Todos os dias, a noite, aponto para uma estrela e converso com ela como se fosse meu pai, pois eu sinto que ele está aqui comigo, me fotalecendo.

    Espero que Deus ilumine vc sempre e sua família tbm. Peço que ele nos ajude a viver cada dia com a saudade!!

    Eu sinto muito@@@@

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