Eu nunca tive medo de mudanças.
Sendo muito honesta, na verdade há algumas exceções, como aquela em que me mudei pra Goiânia sozinha, com apenas 16 anos de idade. Não fazia idéia do que poderia encontrar ao chegar lá, além do fato de morar com pessoas até então desconhecidas. Isso sem falar na mudança para o Mato Grosso aos 11 anos, que é uma longa história... Houve casos em que a mudança na vida de outras pessoas me causou preocupações, como casamentos de amigos meus. Também já temi não ser bem aceita em escolas e trabalhos novos e tive receio em mudar o corte do meu cabelo.
Isso tudo se reduz a nada em comparação com a mudança que estou vivenciando agora. Mudança drástica, indesejada.
Desde que meu pai partiu, cogitei a possibilidade de abandonar tudo que construí aqui em Rio Verde – meus cinco empregos, faculdade, amigos – e voltar para Acreúna, com o intuito de ficar perto da minha mãe e da minha irmã. Seria um grande risco aventurar minha recente carreira na área da comunicação e meu curso quase concluído. Risco esse que eu estava disposta a correr, sem me preocupar com as conseqüências.
De repente caiu sobre mim o peso da responsabilidade. Entendi que não tinha o direito de agir por impulso, irracionalmente... Não agora. Eu precisava manter o equilíbrio, fingir ser adulta e encarar os fatos, porque eles não deixariam de existir simplesmente por serem ignorados.
Mais do que nunca, eu precisava de estabilidade no trabalho. Deixar tudo e ir para Acreúna, que não oferece campo para minha área de atuação, não seria uma decisão sensata. Uma idéia! Minha mãe poderia se mudar pra cá! Genial! Teria sido, se ela não tivesse se recusado, alegando detestar a cidade e não estar disposta a se adaptar a um novo ambiente, o que era totalmente compreensível.
A resposta aumentou ainda mais a minha tristeza, já que eu precisaria ficar longe das duas. Muito confusa, lembro-me bem do conselho dado pelo meu tio Luciano... “O que você acha que sua mãe vai fazer em Rio Verde? Você tem sua rotina de trabalho e estudo e vai ter que deixá-la sozinha. Aqui ela tem nossa família, tem amigos, os irmãos da igreja... Não complique as coisas, minha filha”. Ele estava coberto de razão.
Comecei a orar em prol disso... Precisava tomar uma decisão. Agir emocionalmente, me mudando pra Acreúna, ou ser adulta e ficar longe da minha mãe e da minha irmã, garantindo a elas a segurança financeira da qual precisavam. “Meu Deus, faça Sua vontade, não a minha, nem a da minha mãe”.
Lembro-me exatamente da cena... Estava chegando da faculdade, como no dia em que soube da tragédia. Minha mãe me ligou chorando, o que complicou ainda mais minha crise. “Filha, eu não suporto mais ficar aqui. Preciso me mudar pra Rio Verde urgentemente”. Não sei se posso usar o termo “feliz”, mas “aliviada” viria a calhar.
Desde então, o doloroso processo de mudança começou. Minha mãe decidiu, contra a minha vontade, se desfazer das roupas do meu pai, doando-as. Pode parecer besteira, mas peço a Deus para que não veja outro homem vestido com o que era dele. Ela decidiu também vender praticamente todos os móveis da casa. Muitos questionaram tal decisão, mas eu a compreendo perfeitamente.
Aqueles móveis, além de serem tão familiares e remeterem à imagem do meu pai, representavam para minha mãe lembranças maravilhosas. Lembranças sobre as quais ela não queria pensar no momento. Todos os móveis em questão haviam sido adquiridos em 2006, quando voltamos do Mato Grosso. A ocasião foi uma das mais felizes da vida da minha mãe, porque finalmente ela voltara à sua cidade natal, para junto de toda a nossa família. Por isso essas lembranças tornaram-se dolorosas... Tanta felicidade agora se desfazendo em lágrimas.
O fato é que minha mãe colocou tudo à venda e, a cada negócio que fechava, meu coração se apertava mais quando ela me ligava pra dar a notícia. “Minha filha, vendi o sofá”. Frases desse tipo sempre eram sucedidas por uma longa pausa. “Que bom, mãe. Que bom”. Na verdade, era péssimo. Eu desligava o telefone e chorava... O sofá onde meu pai se sentava, sempre na pontinha (com a bermuda alcançando o peito e a cicatriz na barriga à mostra), para assistir aos vídeos idiotas do Domingo Legal... Aliás, vídeos esses que pra ele eram muito engraçados. Sempre nos chamava pra ver e minha irmã, claro, cortava o barato: “Anêim, pai. Já vi isso na internet”. Sem querer parecer a boazinha, eu sempre ria com ele, mesmo que o vídeo não tivesse graça alguma. Aquele momento pra mim era mágico. Eu e ele na sala, que não mais existe, não do jeito que era... O sofá agora pertence à outra família. A TV seguiu um caminho diferente... É como se nossa história fosse se desfazendo a cada móvel vendido.
Na última vez que estive na nossa casa em Acreúna, prometi pra mim mesma que nunca mais voltaria lá... Estava tudo fora do lugar por causa da mudança e eu me lembrei do dia do acidente, quando cheguei e me deparei com tanta gente superlotando a casa, móveis arrastados, uma grande confusão. Aquela cena não se pareceu em nada com as que eu estava habituada a ver. Pessoas tristes ocupavam o largo banco de madeira, que serviu-nos durante tanto tempo como o cantinho das piadas e conversas gostosas, descontraídas.
Acontece que a imagem da casa formada em minha memória se confunde muito com a imagem do meu pai. Tudo ali é tão parecido com ele. A sala, a cozinha (inclusive a geladeira, onde ele guardava a salsicha que dividia com os gatos e com a Nick, os únicos que apreciavam o mesmo sabor que ele), a churrasqueira, a relíquia... Até a sorveteria (que minha mãe vendeu o quanto antes), na esquina onde passávamos as tardes nos finais de semana... Aliás, toda a cidade se parece muito com ele, por isso é uma tortura ficar lá, principalmente à noite.
Mas o fato é que agora, depois que minha mãe tirou todas as nossas coisas da casa, me bateu um medo inenarrável... Era o nosso lar, nosso refúgio... Agora não passa de um imóvel com placa de “Aluga-se”. Não que precisemos da casa pra nos lembrar dele, mas... Eu não sei explicar.
Ontem as poucas coisas com as quais minha mãe decidiu ficar chegaram aqui em casa, já que vamos nos mudar para uma em frente a que eu moro hoje. A primeira imagem que vi quando o moço abriu o caminhão me fez lembrar de muitas coisas. Trata-se de uma caixa, feita de jornal com colagem de fotos, presente do Anderson quando fazíamos o terceiro colegial. Me lembrei daquela época tão feliz, em que meu futuro era incerto, mas eu tinha minha família completa e apostando que eu seguiria um caminho brilhante.
Cada objeto que pegava ativava minha memória para um episódio vivido pelo meu pai... Devo dizer que foi uma grande tortura ajudar com a mudança. Me lembrei do quanto ele detestava se mudar e como ficava irritado com a bagunça causada pelo ato.
Ainda ontem estive na casa onde vamos morar... A sensação seria ótima, a não ser pelo fato de que agora seremos apenas três. Mas não deixamos de ser uma família, claro, e nosso lar continuará sendo um pedaço do Céu na Terra.
“Eu e minha casa serviremos ao Senhor... O meu lar está alicerçado no amor. Do melhor que vem de Deus é que os meus vão se fartar... Não vai faltar abraço, sorriso e oração... A minha descendência vai exalar comunhão”.
A propósito, preciso ainda convencer minha irmã a vir pra cá o quanto antes, já que ela pretende esperar até o final do ano porque teme a mudança... Quem pode culpá-la por isso? Sim, eu também tenho medo de mudanças.
E quando a gente que mudar, mas teme deixar os que nos amam, aqueles que comungam conosco de um mesmo lar? Tenho querido muito mudar, mas penso na minha família.
ResponderExcluirAcredito que com a perda vem o processo do desapego; sofremos por que a tudo somos apegados. Com a perda Deus nos convida a voltar nus pra Ele, como quando nascemos.
A vida é brilhante, mas as vezes é dura demais.
Que Deus a conforte, você e sua família e mostre que sim; é possível continuar a família e ainda há possibilidade de fazê-la crescer.
Abraços.
da proxima vez que me fazer chorar eu te bato . JURO
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